Valor Econômico
23 de março de 2020
Por Philip Yang — para o Valor, de São Paulo
Semana passada, vimos o presidente Trump, repetidamente, atribuir à China a culpa pela origem e difusão do novo Coronavírus pelo mundo. Ato contínuo, o deputado Eduardo Bolsonaro reproduziu acusação de idêntico teor, deflagrando um conflito sem precedentes no relacionamento diplomático entre Brasil e China.
Qual será o sentido e a motivação dessa acusação? Não me importa se você, leitor, votou ou não em Bolsonaro; se você ama ou odeia o socialismo. Penso que, diante do episódio, devamos todos buscar destilar o potencial significado contido nas manifestações do jovem congressista. Haveria algo, por menor que seja, na expressão do parlamentar, que represente algum interesse coletivo brasileiro?
Ciente das preferências ideológicas e das "bolhas" que dividem hoje a sociedade, busco compartilhar tal indagação sem emitir qualquer juízo de valor, apenas trazendo à tona a sequência de questões que me vêm à mente depois do ocorrido.
Antecipo que não tenho respostas às perguntas que suscitarei ao longo do texto. Imagino que as pessoas que eventualmente as tenham preferirão permanecer em silêncio, ou se manifestar de forma reservada, procurando mais o ocultamento à revelação. Sem mais preâmbulos, seguem minhas interrogações que, espero, possam acrescentar algo às questões próprias dos leitores.
O teor igual de ambas as declarações, na sequência, de Trump e Eduardo Bolsonaro, o chamado 03, é uma coincidência ou terá sido articulada entre os grupos políticos de extrema-direita aos quais pertencem os presidentes do Brasil e dos EUA? Podemos sempre imaginar que a idolatria do jovem deputado seja meramente derivada de admiração pelo líder norte-americano, hoje um ícone de grupos do conservadorismo extremo mundial.
Podemos, num segundo degrau, pensar que o congressista seja movido por fervoroso sentimento de identidade político-ideológica. Nesse contexto, a manifestação do 03 corresponderia a uma sinalização de adesão e de fidelidade ardentes à corrente de pensamento que move a ultra-direita americana. Afinal, o parlamentar acabara de regressar da Conservative Political Action Conference (CPAC), a União Conservadora Americana, evento que contou com a participação de seu ídolo Trump.
No limite, podemos imaginar que o jovem político brasileiro tenha sido impelido a fazer tremular uma bandeira de mobilização política, do tipo: "Ultra-direitistas do mundo uni-vos". É, aliás, conhecida a afirmação e principal idéia fixa de Steve Bannon, o guru-chefe do 03, de que “we're at economic war with China”. Quem sabe, no imaginário do parlamentar, seja esse o desígnio de carreira política participar dessa guerra contra os socialistas chineses, ou de mobilizar as massas por lemas populistas, seguindo as orientações do seu guru-chefe.
Também parece óbvio a acusação de Eduardo Bolsonaro acontecer logo após a viagem presidencial de quatro dias à Florida, durante a qual foi assinado Acordo de Cooperação Militar. Num degrau acima de questionamentos, podemos ainda supor que grupos de pressão possam ter atuado para que, no tema atinente à implantação das redes 5G - certamente a questão infraestrutural mais importante para a transição para a nova economia -, a arquitetura a ser adotada não seja chinesa, mesmo os EEUU não detendo tecnologias alternativas. Nesse contexto, a difamação da China atenderia à guerra econômica contra a China.
Num último nível de especulação, podemos imaginar por fim que integrantes das comitivas dos dois países possam ter chegado à conclusão de que, no contexto do virusplanismo anticiência de ambos os dignitários, a construção de um inimigo comum seria a melhor estratégia de salva-face para a manutenção dos respectivos status quo. Historicamente, como sabemos, a existência de inimigos, reais ou imaginários, sempre foi fator de arregimentação de forças e de união nacional.
Num quadro geral de incertezas de toda a natureza, inclusive eleitorais, esses grupos terão eventualmente pensado que a caracterização da China como a inimiga dos dois países poderia lhes render frutos. Nada melhor, portanto, nesse contexto da ameaça do novo Coronavírus, do que demonizar a China como a grande causadora deste tenebroso acidente sanitário-biológico.
A verdade é que o presidente Bolsonaro não condenou nem aprovou a grave acusação de seu filho Eduardo. E ficamos assim sem saber se o episódio foi uma manifestação destrambelhada de um congressista fanfarrão ou se se trata de uma ação de alta política, em nível tático, pelas forças hoje no poder, no Brasil e nos EUA. Por isso, dificilmente saberemos com segurança se a motivação é de alta estratégia, ou, ainda, de raiz particularista, ideológica e político-eleitoral.
Na ausência da manifestação presidencial, a presidência do Senado, ciente da grave situação para as relações bilaterais, emitiu na 5a feira dia 19 uma nota oficial (Ofício 223/2020/PRESID) para o Presidente Xiping pedindo desculpas formais, sem expressar objetivamente o motivo. Lê-se o documento mas não se depreende o motivo explícito da comunicação. Desculpas por qual motivo? Em todo caso, foi correta e corajosa a tentativa do Senado de proteger as relações bilaterais, demonstrando para a China que o Congresso Nacional confirma a importância estratégica de nossa parceria.
Numa derradeira tentativa de escapar do imbróglio diplomático (e do incômodo de desautorizar o seu próprio filho), o presidente buscou ligar para o seu homólogo Xi Jinping. Como era de se esperar, o presidente chinês recusou a chamada, mandando avisar que a restauração da normalidade só virá com pedido direto formal de desculpas do parlamentar.
Da mesma forma que reage quando instado a falar sobre o seu posicionamento anti-China do passado, o Presidente Bolsonaro vem afirmando que o episódio envolvendo o seu filho "é uma página virada". De fato, Bolsonaro tentou virá-la, mas Xi a segurou, e a página rasgou. A você, leitor, fica o convite para reflitir se essa é a política externa que deseja para o seu país. Como cidadão, preferiria pensar na China como potencial parceiro para alavancar, com investimentos e tecnologias, a participação efetiva do Brasil na Revolução Industrial 4.0 pela infraestruturação adequada de nossas cidades.
Philip Yang, empreendedor e ativista urbano, fundador do Instituto Urbem; mestre em administração pública por Harvard e graduado pelas academias diplomáticas do Brasil e da Suíça; serviu nas Embaixadas do Brasil em Washington e Beijing, entre 1995 e 2001.