Câmara Municipal, câmbio!?
OPINIÃO
FOLHA DE SÃO PAULO
25/02/2020
PHILIP YANG
Um alienígena que pousasse em São Paulo se espantaria com as enchentes que assolaram 800 pontos da cidade. Se ele se aproximasse da Vila Leopoldina, vizinha da USP, da CEAGESP e do Parque Villa Lobos, talvez sua perplexidade aumentasse. Ele veria ali que mais de 800 famílias de baixa renda tiveram suas moradias invadidas pelas águas até a altura da cintura.
Se fosse dotado de um mínimo sentimento de humanidade, a tal criatura ficaria surpresa de saber que há uma solução pronta para o problema: o chamado PIU Vila Leopoldina, projeto de lei que já cumpriu com todos os ritos legais, mas que "não anda" na Câmara Municipal por um problema conhecido entre os terráqueos como "travamento de pauta" – fenômeno que, como sabemos, ocorre quando os vereadores por alguma razão não consideram um projeto suficientemente importante para colocá-lo em votação.
Em visita às vítimas o perplexo alienígena fica sabendo que está prevista a criação, no próprio bairro, de habitações para todas as famílias atingidas, como parte de um programa de urbanização planejado por representantes do governo, do mercado e da sociedade civil, num processo de debates que se estendeu por três anos, perpassando a gestão de três diferentes prefeitos (Haddad, Doria e Covas).
Chamado a explicar o quadro geral à criatura, explico que o projeto conta com: (a) o amplo apoio da comunidade que ali reside há 50 anos, (b) o amparo de uma legislação moderna, conhecida como Projeto de Intervenção Urbana (PIU), conquista regulatória que resultou de décadas de experiências regulatórias, e (c) um proprietário de uma grande gleba (a Votorantim) que confirmou interesse em antecipar o investimento necessário (algo incomum no mercado) para a construção das unidades habitacionais (a maior parte das quais dentro do seu próprio terreno). Uma convergência histórica rara de interesses.
O extraterrestre é tomado agora por indignação: "Se o Poder Executivo está de acordo, o mercado está disposto a pagar esta conta e a comunidade apoia, por que então o Legislativo não examina o projeto"?
Minha explicação só o deixara mais perturbado. "Por que não o votam, a favor ou contra, de uma vez por todas?”, me pergunta o alienígena agora visivelmente revoltado.
Procuro mascarar o meu próprio desconsolo. "Pode ser que eles tenham outras prioridades", digo a ele. Forçando um sorriso, sigo dizendo: "Talvez grupos de pressão estejam atuando contra o projeto, em função de algum interesse mais particularista". “Talvez seja mais cômodo para o legislador”, vou explicando, “não pautar para não precisar enfrentar a contrariedade de certos eleitores.” Incrédulo, ele decide então conversar diretamente com as lideranças da Câmara.
Tal como no ET de Spielberg, desenvolvo relação de cumplicidade com meu interlocutor e torço para que ele possa reacender a humanidade dos legisladores.
Se votarem contra, seguem as famílias na precariedade. A Votorantim, hoje comprometida com o ideal de uma cidade melhor, provavelmente usará seu valioso terreno para empreendimento convencional, de torres cercadas por muros, sem contrapartidas para o bairro. E a regulação do PIU, conquista civilizatória, cairá em desuso, o que nos privará de ferramenta essencial para transformação do território.
Caso votem a favor, guardarei uma ponta de esperança de que temos algum futuro como cidade.
Vai, ET! Porque nós humanos já fizemos tudo o que pudemos…
PS: Torço também, amigo alienígena, que você sugira à Câmara que paute o PIU Leopoldina junto com o PIU Arco Pinheiros. São complementares para o encaminhamento das questões de macrodrenagem da região.
Philip Yang, mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA), é fundador do Urbem (Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole)