Ilustríssima
Folha de S. Paulo
12 de janeiro de 2025
Das Jornadas de Junho à CCXP2024
Fenômeno cultural por trás de CCXP aponta modelos de inclusão para as cidades
Philip Yang
Não é em San Diego, Tóquio ou Nova York que acontece o maior evento de Cultura Pop do mundo. Com um público de mais de 300 mil pagantes, São Paulo abrigou o maior festival geek do planeta, a Comic Con Experience, CCXP2024.
Difícil sair desse evento sem se impressionar pelo vigor econômico do segmento – que gera uma receita anual superior à soma das indústrias do cinema e de produção de musical – e também pela sua dimensão sociológica. Fascinante observar a diversidade desse grande público em torno de uma paixão comum.
Essa massa de gente, majoritariamente de jovens adultos (de 18 a 35 anos), que paga R$ 400 de ingresso e gasta em média R$ 1.000 reais em quadrinhos, mangás, cosplays, colecionáveis e games, emite um sinal claro do impacto que essas atividades de entretenimento e cultura exercem na sociedade contemporânea.
Difícil também deixar de pensar – com uma boa dose de generalização e sem qualquer juízo de valor – como o jovem dos anos sessenta é diferente da juventude de hoje. Os estudantes do movimento de Maio de 68 exaltavam utopias coletivas. Hoje, a impressão é de que, no espectro dessa cultura nerd, há uma ênfase maior na busca por experiências individuais e na satisfação própria. Cada gamer ou cosplayer se torna o protagonista de sua narrativa, explorando mundos virtuais e desafios que refletem suas aspirações, identidades e desejos pessoais.
Nessa perspectiva, parece que os rolêzinhos, que tomaram diversos shoppings do Brasil na esteira das Jornadas de Junho de 2013, estão mais próximos dos movimentos atuais do que da década de 1960. Claro, rolês e CCXPs são manifestações de diferentes culturas populares, mas é possível entrever em ambas uma busca por pertencimento e identidade em um mundo cada vez mais fragmentado, onde jovens se reúnem não apenas para compartilhar interesses comuns, mas também para afirmar coletivamente suas individualidades em um espaço público.
Ambas as manifestações corroboram dinâmicas novas de socialização, que permitem que cada um encontre seu lugar em uma comunidade global, onde a autoexpressão e realizações pessoais são celebradas.
Vendo a aglomeração do evento, fica a sensação de que essa transição do coletivo para o individual não diminuiu a importância dos espaços físicos para a construção de conexões sociais. Apesar do avanço da transição digital, a vida social, ao menos uma boa parte dela, ainda depende da terra como fator de produção, para que humanos de fato existam como seres biológicos e sociais.
Dada a sua dimensão econômica e cívica, parece certo que esse fenômeno cultural poderá ter impacto no “fazer cidades", nas formas de ocupação de espaços urbanos e imobiliários. E dado também que a cultura geek é fortemente lastreada pelo consumo, é importante que empreendimentos urbanos, públicos e privados, sejam concebidos e articulados para que possam acolher de forma inclusiva os diferentes segmentos da sociedade.
A cadeia de valor dessa nova indústria cultural apresenta uma oportunidade singular para que a vontade de empreender que tem emergido de forma eloquente na sociedade seja canalizada de forma positiva. Como sabemos, o impulso ao empreendedorismo tem sido capturado de maneira distorcida por forças políticas, inclusive criminosas, que direcionam esse desejo de grande parte da população para objetivos limitados ou conflitantes com o interesse público.
Num momento histórico de guinada global à direita – marcada simultaneamente por uma revolta das massas contra as instituições de Estado e por uma aparente reverência à livre iniciativa – é fundamental que governos tenham presente a força aglutinadora da cultura. Políticas públicas devem efetivamente criar condições favoráveis para atividades produtivas. Governos ganharão legitimidade quanto mais souberem utilizar a cultura como elemento central para agregar valor, mobilizar recursos e gerar oportunidades em todos os níveis da sociedade.
Por exemplo, cursos de programação podem capacitar jovens a desenvolver jogos e aplicativos que atendam às demandas do mercado geek, enquanto oficinas de escrita de roteiros podem incentivar a criação de narrativas originais que dialoguem com a cultura pop. A colaboração com a comunidade do PerifaCon, a Comic Con da Favela, evento realizado desde 2019 com objetivo de atingir principalmente o público das periferias de São Paulo, pode integrar ainda mais diferentes públicos e a disseminar a potência cultural dessas comunidades.
Além disso, programas de formação em marketing e produção podem preparar profissionais para atuar em eventos culturais, promovendo uma experiência mais rica e diversificada para os participantes. No campo do turismo e da hospitalidade, a criação de roteiros que explorem a cultura nerd nas cidades pode atrair visitantes e gerar novas oportunidades econômicas.
Diante desse fenômeno cultural, ações concertadas entre governo e mercado são fundamentais para que a cultura geek seja um vetor de mudança, em favor da construção de espaços mais integrados e dinâmicos. Nada mais natural do que induzir o fortalecimento desse setor para construir cidades mais coesas e criativas, onde todos possam se beneficiar da presença dessa longa cadeia produtiva para a qual São Paulo, curiosamente, detém o maior público global.