Ensaio
Nexo Jornal
28 de abril de 2023
O fim da monetização?
No PL das Fake News, regular a monetização pode ser a chave
Novas métricas e sistemas de incentivo poderiam incluir o valor educacional ou informativo do conteúdo, a partir de parâmetros consensuados humanamente e controlados por IA
Acabar com a monetização não significaria acabar com a viabilidade econômica de redes sociais? Definitivamente não. O modelo de negócios sofreria transformação profunda, mas não morreria’.
Leia no ensaio de Philip Yang.
O tema é de fato urgente e a Câmara acertadamente aprovou o regime de urgência do Projeto de Lei da Fake News para ser votado em plenário na terça-feira (2). Dentro do que é possível em prazos curtos, esse é o meio que temos para contemplar os interesses em jogo e tentar mitigar o efeito corrosivo da disseminação de informações falsas. Se, no entanto, pudéssemos dar um passo atrás e pensar de forma mais conceitual, haveria outro caminho a percorrer?
Comecemos pelo mais óbvio. Geramos o equivalente a 1 trilhão de novas páginas de informação diariamente. Dado que o controle de conteúdo precisa ser exercido em tempo real – visto que informações danosas podem, em questões de segundos, causar desde mortes até reversões eleitorais e a destruição de reputações – parece certo que, à medida que as ferramentas de inteligência artificial (IA) se aprimoram, elas deverão ser incumbidas do processo de monitoramento e moderação de conteúdo, o que permitirá uma resposta mais rápida e eficiente do que seria possível apenas com recursos humanos. No médio prazo, portanto, o debate deverá estar centrado menos em como controlar as plataformas de mídia social e mais em como vamos construir um consenso em torno dos algoritmos de IA (e de processos institucionais ancilares) que sejam capazes de monitorar o fluxo de informações das redes.
Diante dos imperativos da liberdade de expressão, uma solução diferente e mais radical, poderia envolver, num futuro próximo, não o controle ou a proibição de conteúdos – objetivo difícil de se alcançar – mas a proibição das práticas de monetização das redes sociais, tal como ela é realizada hoje. Vejamos.
Simplificadamente, a monetização se dá de duas formas principais: anunciantes (A) pagam as BigTechs (B) pelo espaço de publicidade nas redes sociais. Essas redes sociais (B) compartilham parte de suas receitas com criadores de conteúdo (C) pela audiência que são capazes de engajar. Além deste fluxo de A para B e de B para C, existe também uma terceira modalidade, de monetização “por fora”, em que anunciantes (A) bancam diretamente influenciadores e celebridades (C) para a geração de campanhas de marketing e proselitismo.
Ao anunciar nas redes sociais no caminho A-B, os anunciantes aproveitam a hipersegmentação oferecida pelas plataformas para alcançar públicos específicos sem necessariamente criar um vínculo direto com os geradores de conteúdo das redes (agentes de sociedade que “postam” nas redes, influenciadores, instituições, empresas, usuários amadores ou profissionais). Por essas duas razões – a eficiência da hipersegmentação e a não-vinculação com esses “postadores” de conteúdo – o volume de anúncio e de receitas pela rota A-B é dominante nessa modalidade de contratação. O volume de recursos no caminho A-C, ainda minoritário, responde por cerca de 4% do volume A-B.
Proponho aqui a criação de um novo ambiente de negócios nas redes digitais que se caracterizaria pela proibição da monetização no eixo B-C. Numa abordagem como essa, desaparecem as práticas de monetização em que geradores de conteúdo são pagos pelas plataformas digitais com base em métricas de engajamento. A mediação entre anunciantes e “postadores” via plataformas seria vedada e todos os vínculos entre anunciantes e criadores de conteúdo seriam obrigatoriamente trazidos à luz do dia, por norma legal de revelação, que obriga a divulgação pública desses contratos.
Da mesma forma como acontece hoje, as plataformas teriam suas receitas geradas pelos anunciantes, mas elas estariam proibidas de remunerar criadores de conteúdo. Anunciantes, ao contratarem seus espaços nas redes, terão previamente criado conteúdos com apoio de agências de publicidade para anúncios convencionais (Google Ads, vídeos para Youtube, feeds para Instagram, etc). E na hipótese de optarem por campanhas de marketing conduzidas por celebridades ou influenciadores, as anunciantes contratariam diretamente esses profissionais, sem qualquer intermediação ou remuneração pelas plataformas.
A opinião pública constituída pela sociedade civil – cidadãos, instituições, empresas – seguiria livre para abrir contas na diferentes plataformas e para manifestar-se abertamente nas redes, mas estaria terminantemente proibida de receber das plataformas pagamento ou qualquer tipo de compensação material pela sua contribuição de conteúdos.
Mas acabar com a monetização não significaria acabar com a viabilidade econômica de redes sociais? Definitivamente não. O modelo de negócios sofreria transformação profunda, mas não morreria. Provavelmente, anunciantes diminuiriam o dispêndio A-B, mas aumentaria substancialmente os gastos no modo A-C que hoje, embora minoritária, já vive tendência de alta. Haveria uma reprecificação geral dos espaços de mídia, mas para o bem geral da sociedade.
Em paralelo, as Big Techs poderiam abrir o caminho para um novo sistema de incentivos, uma "race to the top", civilizatória, em lugar da "race to the bottom", a corrida para o fundo, distópica e regressiva, que caracteriza o nosso sombrio ambiente de hoje, no qual as empresas de tecnologia optam por priorizar o conteúdo nocivo, o engajamento e a monetização em detrimento da ética e da responsabilidade social. Junto com as redes, reguladores no governo desenvolveriam novas métricas para monetização que não sejam baseadas em visualizações de página, taxa de cliques ou impressões.
Novas métricas e novos sistemas de incentivo poderiam incluir o valor educacional ou informativo do conteúdo, a partir de parâmetros consensuados humanamente e controlados por Inteligência Artificial.
Além de contribuir para a redução de conteúdo polarizador, a proibição de práticas de monetização contratadas diretamente por anunciantes baseadas em métricas de engajamento poderia resultar em outros efeitos positivos, como a redistribuição dos recursos da indústria publicitária entre veículos de informação convencionais e digitais. Essa mudança poderia potencialmente levar a um reequilíbrio mais orgânico dos fluxos de informação entre os diferentes canais de mídia e estimular a produção de jornalismo mais independente e imparcial.
Claro, a proibição da monetização em redes sociais corresponderia a uma restrição bastante drástica à liberdade econômica e à livre iniciativa. Seria uma medida dessa magnitude justificada? Alguns argumentos a favor da proibição incluiriam a necessidade de proteger a saúde mental dos usuários, o combate à desinformação, a redução da polarização e do ódio online e, acima de tudo, a proteção da democracia. Assim fizemos nas campanhas contra o fumo e na proibição de diversos medicamentos que se provaram nocivos à saúde.
A liberdade econômica e a livre iniciativa, assim como a liberdade de expressão, são princípios fundamentais das democracias liberais. No entanto, o direito de buscar lucros e participar de atividades comerciais está e sempre esteve sujeita a regulamentações e restrições impostas pelos governos para proteger o interesse público, a saúde e a segurança, ou outros objetivos sociais. Nesse sentido, como objetivo de política pública num ambiente de polarização, talvez seja mais plausível e factível hoje regular e controlar métodos de monetização do que conteúdos. Afinal, nela – na monetização – que se situa a raiz de todos os males.
Do ponto de vista jurídico, a proibição da monetização B-C dependerá do equilíbrio entre os interesses públicos e privados em questão e das leis e regulamentações específicas em vigor no país ou jurisdição onde a proibição está sendo considerada. Dado o alcance global das redes digitais e a importância do tema, o natural, neste caso, seria garantir que a proibição fosse aplicada internacionalmente, por algum instrumento público-privado de pactuação internacional. Nada impede, no entanto, que legislações nacionais sejam inicialmente concebidas em países com mercados grandes, a partir de esforço amplo de convergência entre agentes do governo, do mercado e da sociedade civil.
“Tudo não terás”, dizia em tom bíblico o diabo John Milton, interpretado por Al Pacino, ao advogado em ascensão Kevin Lomax, no filme "O Advogado do Diabo" (1997). Entre o direito à livre iniciativa e a liberdade de expressão, o melhor de todos seria preservarmos coletivamente a mais suprema liberdade de todas que é a liberdade de escolha. Escolhamos, pois, a liberdade que nos preserva como sociedade e como espécie.