Opinião
Valor Econômico
14 de setembro de 2022
Financiando a Cidade Compacta
Por Philip Yang — Para o Valor, de São Paulo
Embora o ideal da chamada “cidade compacta” continue a nortear o pensamento urbano e ecológico, uma forte tendência no mundo real empurra as cidades para uma outra direção: a do espraiamento.
As novas modalidades de trabalho remoto e híbrido, a ocorrência de epidemias, e o advento potencial de novos modais de transporte – como veículos autônomos e drones de passageiros e cargas – tendem a favorecer a desaglomeração urbana, ou seja, o desadensamento das cidades. No plano comportamental, um estilo de vida voltado para um contato maior com a natureza, facilitado por fórmulas avançadas de logística e de varejo, tem inspirado famílias de diferentes gerações a buscar moradias em locais mais afastados dos grandes centros urbanos.
Em termos espaciais, o desdobramento resultante dessa tendência será o aumento da demanda imobiliária em regiões periurbanas. Grandes áreas ociosas nos arredores das cidades grandes e médias tenderão a ser agora alvo de exploração por parte de loteadores, urbanizadores, proprietários dessas terras, incorporadores e agentes econômicos e sociais.
Ainda que essa vertente de desenvolvimento urbano e imobiliário possa vir a atender ao sonho de consumo de uma parcela importante da população, as consequências ambientais do espraiamento urbano podem ser nefastas. Isso por conta da fricção que a urbanização gera com áreas de preservação, fronteiras agrícolas, mananciais, espécies em extinção e, claro, pelo potencial aumento da pegada de carbono que novos deslocamentos acabam gerando.
O fenômeno da desaglomeração deverá prevalecer em todas as regiões do país. Atenção maior deve ser dada ao Centro-Oeste e Norte, dado o potencial impacto que a expansão urbana poderá exercer sobre os biomas da Amazônia, do Pantanal e Cerrado. Os municípios dessas regiões passaram a concentrar muita riqueza, e tenderão a crescer e atrair fluxos migratórios – de ricos e pobres.
Se, de fato, o alastramento é inevitável, será possível que as novas áreas urbanas, surgidas dessa nova onda de espraiamento, sejam estruturadas como cidades compactas? Ou seja, seremos capazes de produzir cidades que integrem moradia, trabalho, lazer, comércio e serviços, num raio de proximidade, facilmente acessível por caminhada, bicicleta ou transporte público? Ou vamos incorrer nos mesmos erros do passado, gerando tecidos urbanos inseguros, murados, ineficientes, permeados por enclaves onde as segregações prevalecem sobre a integração?
Obstáculo maior para o desenvolvimento de cidades compactas tem a ver com que os diferentes produtos imobiliários – residências, lojas, escritórios, galpões, etc. – apresentam velocidades distintas de maturação. Por exemplo, áreas comerciais só se desenvolvem quando um público de passantes – moradores ou trabalhadores – geram uma demanda suficiente que dê sustentabilidade ao comércio. Polos de geração de emprego só podem surgir quando uma infraestrutura de mobilidade está pronta.
O problema é agravado pelo fato de que a cadeia de produção imobiliária é extremamente especializada. Investidores, fundos e incorporadores dedicam-se exclusivamente a um único tipo de produto: lajes corporativas, shoppings, habitação para faixas de renda específicas, armazéns. Ou seja, o ideal de uma cidade que integre esses diferentes produtos imobiliários num determinado perímetro colide com a lógica de alocação de capital que, convencionalmente, segmenta os diferentes usos da terra.
Classicamente, o investimento se preocupa essencialmente com a reprodução do capital, sem se interessar em externalidades ambientais e urbanas. Esse divórcio entre a lógica do capital e a lógica da organização do território gerou cidades ruins e, no futuro, tenderá a agravar o problema. Haveria afinal algo que poderia ser feito para mitigar esses efeitos negativos que surgem no horizonte das cidades?
Proprietários de grandes glebas, investidores e seus fundos poderiam criar veículos de investimento em que o desenho urbano e a alocação de recursos estejam em sintonia com as diferentes expectativas de prazo e retorno do capital investido. Seria interessante que as diferentes velocidades de vendas dos diversos produtos imobiliários ensejassem ciclos de investimento e remunerações diferenciados para cotistas com mais ou menos apetite para risco e paciência.
Governos municipais poderiam oferecer incentivos fiscais e regulatórios em zoneamentos capazes de induzir mais densidade e diversidade de usos. Agências e bancos de fomento em nível federal poderiam incentivar tal produção concedendo crédito atrelado a bons projetos urbanos e facilitando mecanismos de garantia “non-recourse”, vinculados unicamente à terra e aos imóveis dos empreendimentos financiados.
O voluntarismo das forças privadas é fundamental, mas provavelmente insuficiente se a força de ferramentas regulatórias e creditórias de agentes públicos não induzirem e forjarem um novo ordenamento urbano que espelhe, afinal, a vontade e as necessidades de toda a sociedade. A mitigação dos desequilíbrios ambientais e o combate da desigualdade são imperativos da ordem econômica. E ambos os processos estão concentrados no meio urbano. Globalmente, as cidades ocupam menos de 2% da superfície terrestre, abrigam 3/4 da população mundial e respondem por 3/5 das emissões de CO2 e do consumo total agregado de energia. E tais números são crescentes.
O nosso futuro é urbano. Se a lógica do capital for direcionada para a luta contra as mudanças climáticas – fortemente determinadas pelo que acontece nas cidades e na sua expansão – certamente poderemos ter uma perspectiva melhor e mais sustentável. E a democracia, para sobreviver, precisa de cidades melhores que, a partir da geração de bens coletivos, promovam uma política distributiva mais inclusiva. Se o capitalismo não souber gerá-las, o liberalismo radical, aquele que apregoa a ausência total do Estado, corroerá os próprios fundamentos sobre os quais a liberdade econômica se assenta.
Philip Yang é fundador do Instituto URBEM e Senior Fellow do CEBRI.