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Jane Jacobs ensinou as virtudes da mistura

Especial para Mundo - 09/2017

Philip Yang

Sem diploma universitário, uma cidadã de Nova York revolucionou o pensamento urbano. São Paulo e outras metrópoles brasileiras deveriam se inspirar em suas ideias.

Você entende de cidades? Saberia dizer o que faz uma cidade melhor ou pior para se viver, trabalhar ou simplesmente se divertir? Faz alguma ideia de como o território urbano se organiza, compartimentando seu espaço entre áreas para moradias, ruas e calçadas, parques e comércio?  

Jane Jacobs foi uma cidadã comum, sem diploma universitário ou qualquer outra formação em arquitetura ou planejamento de cidades, que se tornou uma das mais influentes personalidades do urbanismo contemporâneo a partir de meados da década de 1950. Autora do livro Morte e vida de grandes cidades (1961), obra que se consolidou como uma das maiores referências conceituais do pensamento urbano, Jane Jacobs revolucionou a disciplina, trazendo reflexões que foram inicialmente vistas com desprezo e desconfiança por especialistas do setor - urbanistas, incorporadores imobiliários, políticos e sociólogos - para serem definitivamente assimiladas à teoria e prática do urbanismo atual.

As ideias de Jacobs passaram a ganhar maior difusão a partir de um evento na Universidade Harvard em 1956, uma conferência em que ela tomou parte quase acidentalmente. Três anos antes, Jacobs, desempregada, folheando uma revista de arquitetura que seu marido assinava - a Architectural Forum, se deparava com um anúncio de emprego para o cargo de editor-assistente da própria revista. Apesar de não possuir qualquer credencial específica para o cargo pretendido, Jacobs candidatou-se e foi contratada.

Os organizadores do evento haviam convidado o chefe de Jane Jacobs, editor da publicação, Douglas Haskell, para palestrar. Impossibilitado de comparecer, Haskell indicou sua assistente como substituta. Em meros dez minutos de palestra, diante de uma plateia de grandes nomes do urbanismo de então, as reflexões de Jane Jacobs geraram ondas tectônicas que até hoje se fazem sentir em prefeituras, incorporadoras, movimentos de bairro, escolas de arquitetura e escritórios de planejamento urbano.

Em linguagem simples e direta, e sem qualquer recurso ao jargão técnico que domina o ambiente acadêmico, atacou o pensamento dominante com argumentos e críticas baseados em observações de aspectos da vida cotidiana que escapavam aos profissionais da época. De forma incisiva, Jacobs chamou a atenção para o fato de que projetos urbanos quando conduzidos exclusivamente por profissionais do planejamento sem o envolvimento de seus reais interessados podem deixar de prever elementos fundamentais para a vida em sociedade e para o sucesso do espaço projetado. Não se deveria projetar sem ouvir os reais interessados, moradores e incorporadores – essa era a mensagem crucial.

Em tom quase irônico, Jacobs indicava por exemplo que os empreendimentos residenciais da época não previam a existência de lojas, algo inaceitável na visão jacobsiana, que preconizava a mistura de usos - habitação, trabalho, comércio e lazer - como algo fundamental para a formação de tecidos urbanos sadios. Ainda no mesmo evento, Jacobs ressaltava que, num projeto habitacional no East Harlem em Nova York, o principal espaço de convívio social de seus moradores era a lavanderia comunitária do prédio, situada no subsolo. Causticamente, Jacobs perguntava à plateia se o projetista teria imaginado que o coração do empreendimento - principal lugar de encontros que dava vida à comunidade - situava-se no porão do edifício.

Dois anos mais tarde, num artigo publicado em 1958 na revista Fortune, Jacobs desferiria novo ataque feroz ao racionalismo planejador em voga na época. Ao referir-se aos diversos projetos de renovação urbana então em curso, afirmou de forma mordaz que as cidades do futuro "serão espaçosas, parecidas com um parque e sem qualquer aglomeração." Prosseguiu:  "Elas apresentarão longas vistas verdes. Serão estáveis e simétricas e ordenadas. Limpas, impressionantes e monumentais. Terão todos os atributos de um cemitério bem conservado e digno".  Se planejadores, políticos, arquitetos e empreendedores forem capturados por anseios de ordem e limpeza e tomados pela fascinação por maquetes, prosseguia Jacobs no mesmo texto, a planificação conduzirá os centros urbanos não a um processo de revitalização, mas à morte.

O reconhecimento amplo da força das ideias e ideais de Jacobs ocorreriam no início dos anos 1960. Diante da ameaça de ver destruído o bairro de Greenwich Village pela passagem de uma grande artéria viária promovida pelo famoso e todo-poderoso construtor de pontes e rodovias de Nova York,  Robert Moses, Jacobs uniu a comunidade local numa batalha épica em prol da preservação de seu bairro, evitando que a obra viesse a rasgar o Baixo Manhattan mediante a demolição de 416 edifícios comerciais e residenciais que caracterizam até hoje as conhecidas paisagens do SoHo e de Greenwich.

A vitória do movimento liderado por Jacobs representava o triunfo não apenas de uma causa urbana, mas sobretudo de um processo político do "fazer cidades". No Greenwich Village, Jacobs mostrava ao mundo que projetos importantes, com fortes impactos sobre a vida das pessoas nas grandes cidades, não podem jamais ser decididos de forma autoritária, de "cima para baixo", sem o envolvimento das  forças representativas de uma cidade: a sociedade civil, as forças de mercado e a autoridade pública.

Passadas mais de cinco décadas desse grande embate, Jane Jacobs teria ainda algo a ensinar a São Paulo e aos paulistanos?

O principal legado de Jacobs é o ensinamento indelével de que as cidades são construídas e regidas pela interação de forças e interesses necessariamente conflitantes, que devem sempre ser objeto de diálogo e de negociação. Graças a Jacobs, Nova York consolidou um dos marcos regulatórios mais favoráveis à discussão pública de projetos urbanos, por meio de regras que organizam os debates entre os diferentes interessados. Foram estabelecidas as formas, os procedimentos e os prazos para a superação de conflitos e a tomada de decisões, permitindo assim que a cidade "se destrave" - uma verdadeira inspiração para São Paulo que, hoje, tanto tempo depois, parece começar a caminhar nessa mesma direção.

No plano individual, Jacobs deixa também o ensinamento e a esperança a todos os paulistanos. Naquela que é uma de suas mais conhecidas citações, Jacobs nos lembra que "as cidades têm a capacidade de prover algo para todos, somente porque, e somente quando, são criadas por todos nós".

 

Philip Yang é mestre em administração pública pela Universidade Harvard e fundador do Urbem, Instituto de Urbanismo

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