Bairros social e economicamente mistos geram riqueza para todos
Folha de S. Paulo - Ilustríssima, 27/11/2016
PHILIP YANG
Moradores de Higienópolis e Georgetown, bairros em São Paulo e Washington, respectivamente, opuseram-se à implantação de estações de metrô em suas vizinhanças, e as gares acabaram sendo construídas fora do coração de tais perímetros, o que privou as comunidades desse meio de transporte.
Medo, preconceito elitista ou desinformação parecem ter desencadeado na vizinhança vigorosa ação Nimby, iniciais de "Not in My Backyard" (no meu quintal, não). Lá como cá, verificou-se um triste desfecho em que todos perderam –inclusive os "nimbyistas".
Afinal, moradores de Polanco, Bois de Boulogne e Soho –endereços da Cidade do México, de Paris e de Nova York que abrigam alguns dos metros quadrados mais caros do mundo– convivem e se beneficiam da mobilidade e da diversidade social propiciadas pelas estações de metrô ali incrustadas.
Pródiga em gerar acrônimos que ganham força semântica e passam a ser incorporados ao léxico corrente, a língua inglesa define Nimby como a atitude de oposição ao estabelecimento de algo tido como indesejável ou perigoso –de sex shops e bares a antenas de transmissão; de creches a aeroportos e lixões– nas cercanias de onde residem os reclamantes.
Não temos um termo equivalente em nosso vernáculo, mas a síntese propiciada pelo vocábulo nos é útil como ferramenta de expressão, pois a atitude Nimby representa hoje uma força (oni)presente no processo de urbanização das cidades brasileiras.
O clamor Nimby pode revestir-se de valores universalistas, de aceitação ampla (como a preservação ambiental ou histórica), ou carregar, ao contrário, bandeiras de interesse local, por vezes válidas, por vezes motivadas por preconceitos e sectarismos.
Trata-se, portanto, de vetor participativo que impõe desafios de governança às democracias contemporâneas, uma vez que a contraposição entre o interesse geral e o particular não encontra equilíbrio fácil, estável ou justo. Como dizia Rousseau, "o interesse comum não é o interesse de todos".
A legitimidade das manifestações Nimby varia segundo a natureza e os benefícios ou prejuízos coletivos que o projeto em questão pode trazer. Um depósito de lixo atômico provavelmente enfrentaria oposições mais justificáveis do que um jardim de infância. Mas o nimbyismo atua contra gama ampla de empreendimentos públicos e privados, e nem sempre as decisões derivadas desse tipo de pressão refletem o melhor interesse geral.
MORADIA SOCIAL
Nada se equipara, entretanto, aos dilemas que emergem quando projetos de habitação social são propugnados pelo governo ou pelo mercado junto a comunidades abastadas. Nimbyistas rapidamente se mobilizam contra tais empreendimentos, gerando reações extremadas. "A presença de moradias populares trará mais crime e violência para o bairro", dirão alguns. Outros, mais sectários, reafirmarão convicções elitistas e o desejo de viverem "longe dos pobres". "Todos têm direito à cidade", defenderão de outro extremo os mais compassivos.
Controvérsias à parte, o Nimby pode ser desencadeado por questões que envolvem sentimentos, preferências ou, simplesmente, valores econômicos. Essas três categorias de motivações normalmente se entrelaçam e se manifestam de forma a um só tempo violenta e difusa.
Num país onde os programas de habitação social deixaram historicamente um rastro de pobreza e deterioração, é natural que segmentos da classe média temam pela perda de valor patrimonial com a construção de moradias populares em seus bairros e passem a adotar uma atitude Nimby. "Não quero que meu imóvel se desvalorize", dirá o incomodado.
A experiência em diferentes países corrobora apenas em parte esse temor, mostrando que projetos bem concebidos, dotados de mecanismos de gestão e em bairros bem infraestruturados, acabam por valorizar a vizinhança. Ou seja, a habitação social só desvaloriza o entorno se o programa for deficiente nesses quesitos: projeto, gestão e infraestrutura. Se o plano incluir uma escola pública de qualidade, a valorização é certa, como mostra a experiência mundo afora.
Os sentimentos (de medo, desconfiança, repulsa, injustiça etc.) situam-se no domínio do subjetivo e não necessariamente são expressos em público por seu caráter íntimo ou por suscitar dilemas de ordem moral e ética. O nimbyismo motivado por sentimentos indizíveis vocalizará sua oposição por meio de artifícios, racionalizações que buscarão ocultar as motivações reais da rejeição.
É o caso de construções como albergues, hospícios ou postos de saúde, equipamentos de forte caráter humanitário que, como as habitações subsidiadas, são frequentemente indesejados em certos bairros, gerando oposições, veladas ou expressas, e doses variadas de culpa ou remorso no nimbyista.
Já as preferências, apesar de serem derivadas de sentimentos, movem-se no plano mais objetivo dos princípios e valores construídos racionalmente e referem-se a escolhas pessoais. "Moro num lugar tranquilo e exclusivo", ostentará com orgulho o cidadão mais conservador, enquanto seu concidadão mais progressista retrucará com igual brio a sua preferência por bairros mais movimentados e abertos –social, cultural e economicamente mistos.
Seja qual for a motivação nimbyista (material, íntima ou principista), o fato é que uma cidade que busca um ideal civilizatório não pode se tornar refém de manifestações Nimby. O nimbyismo pode se constituir em forças de congelamento do território, num momento em que a busca da construção de tecidos urbanos mais justos, eficientes e belos se impõe como imperativo do desenvolvimento econômico e social das coletividades que almejam ingressar ou permanecer no núcleo dinâmico da economia mundial.
Estudo recente publicado pelo National Bureau of Economic Research (NBER), um dos mais prestigiosos centros de pesquisa econômica dos EUA, mostra que a segregação espacial da população entre bairros de alta e baixa renda gera graves ineficiências econômicas. Os pesquisadores Chang-Tai Hsieh e Enrico Moretti projetaram o que ocorreria com o PIB local e com as taxas de crescimento caso a dispersão geográfica dos salários fosse uniformizada.
A conclusão foi surpreendente: se os trabalhadores das regiões de baixa renda pudessem passar a morar em regiões de alta renda, por medidas que reduzissem as barreiras à construção de residências em apenas três cidades (Nova York, San Francisco e San José), o PIB americano cresceria 9,5%.
Ou seja, o compartilhamento de uma área urbana entre pessoas de diferentes faixas de renda representa não apenas o ideal utópico de uma democracia espacial mas também um motor de eficiência econômica.
E a importância dessa tese –a de que territórios socialmente plurais são mais eficientes do ponto de vista produtivo– não pode ser minimizada, pois constitui uma pauta que une (ou pode unir) estruturalmente correntes de esquerda e direita e as agendas e partidos de inclinação pró-mercado e pró-Estado com preocupação social.
TODOS JUNTOS
Nada errado, portanto, em promover uma cidade em que enfermeiros, designers, executivos, professores de escolas públicas, advogados, caixas de supermercado, engenheiros e cabeleireiros morassem mais perto uns dos outros e dos grandes centros.
E é neste tema, o do ordenamento espacial das cidades, que reside a grande oportunidade de, coletivamente, construirmos uma dupla plataforma voltada para o crescimento da economia e para o aumento da coesão social.
Para que isso seja possível, as vozes do nimbyismo devem ser acolhidas como um vetor participativo da democracia, que introduz variáveis importantes nas decisões voltadas para definição dos interesses públicos maiores, mas jamais como uma força inercial, de retardamento ou paralisia das necessárias transformações urbanas.
As cidades carregam a possibilidade de transformação do país, de sonhar um novo Brasil, economicamente mais dinâmico e socialmente mais justo. Diante de nós está aberta oportunidade histórica de mudança e de inovação, dado que as grandes aglomerações urbanas brasileiras são pouco consolidadas, de história muito recente, por terem crescido fundamentalmente há menos de um século, o que as faz mais permeáveis a mudanças do que suas homólogas no mundo desenvolvido.
Entre as megacidades do mundo, São Paulo detém um dois maiores estoques de glebas centrais subutilizadas. Ocupadas no passado por indústrias, elas hoje se encontram abandonadas ou com usos de baixa densidade. Além desses terrenos, o poder público dispõe de amplo patrimônio fundiário e edilício desocupado ou mal ocupado, imóveis que poderiam ser destinados a usos mais eficientes, em processos de concessão, de PPPs ou de privatização.
E as ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) destinadas à habitação social, verdadeiras reservas fundiárias para moradias populares demarcadas como resultado de grande avanço regulatório, permanecem muito aquém de seu potencial de ocupação e adensamento.
Esses territórios, centrais e ociosos, prestam-se a uma grande renovação urbana. Para que isso ocorra, dependemos de uma ação concertada entre as três esferas de governo e de uma política urbana que arregimente as forças de mercado e a sociedade civil em torno da fabricação das nossas cidades.
No passado recente, as políticas federais de habitação do Ministério das Cidades (como o programa Minha Casa Minha Vida) geraram a antítese de uma política urbana, promovendo a formação de guetos de segregação em periferias. Curiosamente, os quase R$ 300 bilhões alocados ao projeto geraram moradias majoritariamente fora das ZEIS. A coordenação entre governo federal e governos locais é fundamental para o sucesso de qualquer política urbana.
Na perspectiva da política econômica, podemos imaginar que a formação e a regeneração de tecidos urbanos poderiam se tornar alvos preferenciais de medidas anticíclicas do governo federal principalmente por três razões.
Ei-las: territórios socialmente mais plurais podem ser mais eficientes; a geração de espaços públicos urbanos de qualidade corresponde, em última análise, a uma política distributiva pela disseminação de bens coletivos (e consequente melhoria da qualidade de vida); a nova economia, ou economia do conhecimento, gera valor nas cidades –mais de 75% do PIB é gerado em território urbano–, e não há como fazer parte desse novo paradigma produtivo se não arrumarmos nossos tecidos urbanos.
As cidades projetam no território aquilo que uma coletividade almeja ser no presente e no futuro. Devem ser pensadas como perímetros destinados à eficiência econômica e locais de construção e fruição de valores civilizacionais fundamentais à cultura e à identidade brasileira: tolerância, diversidade, convívio, alegria.
O Nimby, ainda que às vezes legítimo, trata apenas da parte negativa –daquilo que não queremos. A parte afirmativa, aquilo que efetivamente queremos em nossas vidas urbanas, está ainda por ser construído.
PHILIP YANG, 54, mestre em administração pública pela Universidade Harvard, é fundador do Urbem (Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole).