YIMBYs versus NIMBYs e
o impasse nas grandes cidades
Caos Planejado
25 de janeiro de 2021
Philip Yang
Uma estranha aliança entre milionários e a esquerda californiana foi capaz de travar projeto de lei que passaria a permitir o adensamento no entorno dos eixos de transportes das grandes cidades do estado norte-americano. O projeto de lei, cheio de boas intenções, foi proposto por ativistas pró-moradia, os chamados YIMBYs (acrônimo de “yes in my backyard)”, que buscam uma solução para a grave crise habitacional que se abate sobre a Califórnia. Resultado: a esquerda denunciou a potencial tendência gentrificadora da iniciativa, e os proprietários NIMBYs (not in my backyard) das mansões nos arredores da regiões afetadas pela regulação proposta se opuseram veementemente ao desenvolvimento urbano-imobiliário de seus entornos.
O episódio não seria de interesse geral, não fosse pelo fato de que o embate e os impasses ocorridos no Capitólio da Califórnia entre 2018 e 2020 se repetem em cidades mundo afora, de Mumbai a Shanghai, de Sacramento a São Paulo, e também em Brasília. Vejamos cinco exemplos brasileiros para extrairmos uma possível lição.
Cena 1. Quem presenciou alguma audiência pública sobre o Projeto de Intervenção Urbana (PIU) da Área Central em São Paulo, necessária tentativa de organizar uma possível requalificação do centro, terá percebido que uma grande sinuca também impede o avanço do processo. De um lado, agentes do mercado imobiliário clamam pela redução dos valores de outorga onerosa (exigida como contrapartida pelo direito de construir para que o poder público possa fazer sua parte na melhoria da infraestrutura local). De outro, entidades de classe, academia e movimentos sociais acusam o governo de entregar de graça o Centro às incorporadoras, e exigem valores mais elevados de outorga.
Cena 2. Na Vila Leopoldina, em São Paulo, projeto de reaproveitamento e reconversão de bairro industrial para uso misto segue travada na Câmara Municipal há ano e meio. A proposição oferecida por agentes do mercado e da sociedade civil (Grupo Votorantim e URBEM, entre outros) foi transformada em projeto de lei pelo executivo municipal e encontra apoio em amplos setores da sociedade em geral. No entanto, no Legislativo, o projeto empaca dado o enfrentamento que coloca em lados opostos as comunidades vulneráveis da região, amplamente favoráveis à transformação pretendida, e os condomínios de classe média contrária ao assentamento das favelas no próprio bairro.
Cena 3. A tentativa de concessão do complexo do Anhembi foi barrada em 2016, pois, para a base petista de então, uma concessão ao privado seria uma medida liberal demais. Logo em seguida, com a vitória de Doria nas urnas, a concessão é mais uma vez vetada, pois, pela nova gestão, uma concessão seria algo excessivamente intervencionista; o bom seria privatizar. Passam-se (perdem-se) cinco anos para constatar-se efetivamente que de fato o único modelo viável é o da concessão.
Cena 4. No âmbito estadual, o governo enfrenta a paralisia do processo de concessão do Complexo do Ibirapuera, equipamento que há anos sofre com a falta de investimento, desatualização tecnológica, degradação física e subutilização. A tentativa de concessão, em processo estruturado às pressas e sem o necessário cuidado técnico e político, mais uma vez, coloca em pólos opostos aqueles que imaginam que a gestão privada será capaz de rentabilizar o espaço e, a partir dessa perspectiva de remuneração, investir na modernização do complexo e garantir a sua fruição, e os que temem que a privatização comprometerá sua principal função, a de um complexo esportivo público, além de implicar numa possível perda de patrimônio histórico.
Cena 5. No plano federal, buscando desesperadamente reverter situações de impasse em processos aprobatórios, o Ministério da Economia lança serviço de licenciamento de obras a ser conduzido por empresas privadas habilitadas pelo governo, que deverão constituir o “Mercado de Procuradores Digitais de Integração Urbanístico de Integração Nacional”. Competência municipal por excelência, o licenciamento de obras passa, a partir de agora, a ser exercido, ainda que de forma optativa, pelo mercado com a interveniência do governo federal. Parece óbvio que, mais uma vez, dificuldades e confrontos advirão dessa medida.
Podemos extrair alguma lição desses episódios longos, tortuosos e ineficientes? Creio que a moral da história é essa: as legislações urbanas mundo afora - planos diretores, zoneamentos, códigos de obra e de proteção histórica - e as formas de legislar envelheceram. Na cidade real, o resultado, conforme afirmam especialistas como Silvio Oksman, "é uma tragédia, uma massa construída absurda, que desconsidera a cidade existente e suas dinâmicas". Em suma, os procedimentos tradicionais não estão dando conta de situações complexas que envolvem as discussões citadas acima.
O despreparo dos autocratas se manifesta de forma única: pelo desmonte das instituições públicas, ao arrepio de construções coletivas e civilizatórias. As cenas 4 e 5 acima confirmam a irônica e verdadeira máxima de Churchill, para quem "a democracia é a pior das formas de governo, à exceção de todas as demais". Também no plano das cidades, não temos alternativa que não seja a de radicalizar a democracia, aumentando, jamais diminuindo os mecanismos de participação, escrutínio e deliberação de projetos urbanos. As novas tecnologias – big data, inteligência artificial e renderização – podem e devem ser mobilizadas em favor de novas formas de governança democrática e não apenas à triste formação de tropéis de golpistas.
A participação democrática não pode constituir uma força paralisante. Ao contrário, com auxílio das tecnologias, deve tornar-se uma força propulsora da deliberação do futuro. Ferramentas de visualização e de simulação de fluxos, mecanismos voltados para a coleta de percepções, necessidades e de dados de interesse das forças sociais e de mercado e, finalmente, processos de decisão coletiva mais diretamente ligados às comunidades interessadas podem constituir a contribuição das novas tecnologias para uma democracia mais radical, que amplie e capilarize os mecanismos de participação e, ao mesmo tempo, favoreça a velocidade e a eficiência da organização dos territórios urbanos.
Philip Yang é fundador do Instituto URBEM (www.urbem.org.br)