24/06/2018
Talita Bedinelli
Em algumas áreas da Favela da Linha, na zona oeste de São Paulo, é sempre noite. Quando do lado de fora amanhece, do lado de dentro o sol não entra. As improvisadas construções de mais de um andar, feitas dos dois lados da viela, quase se encontram no topo e criam um túnel que impede a passagem da claridade. Ali, cada centímetro é ocupado, ainda que isso signifique uma circulação de ar diminuta e um constante cheiro de mofo misturado ao de esgoto e ao de diferentes refeições em preparo. A maioria das casas, construídas parede com parede, não tem janela. Mas nas em que há mais condições, tudo é arrumado: dos pisos revestidos de cerâmica e paredes com textura ao conforto dos aparelhos eletrônicos, ligados à uma rede conectada por gatos, que às vezes faíscam e pegam fogo. Quando acontece é preciso recomeçar as casas outra vez.
Assim é a Favela da Linha, mas também poderia ser a do Nove, duas comunidades dos arredores da Ceagesp, maior central de abastecimento de frutas, legumes, verduras e flores da América Latina. Juntas, elas ocupam uma área de 14.207 metros quadrados, uma média de 20 metros quadrados para cada uma das cerca de 700 famílias que vivem ali. Estão neste local há 46 anos, esquecidas pelo poder público sem qualquer plano concreto de remoção para um local menos precário. Até agora. Seus terrenos despertaram o interesse do setor privado, que promete para seus moradores apartamentos numa área nobre não muito longe. "É um sonho", resume o motorista de carga Ronivaldo Araújo, de 42 anos, dono de uma casa de dois andares e um quarto na Linha. Mas seus futuros vizinhos não gostaram nada da ideia e querem evitar a transferência a qualquer custo.
As duas favelas fazem parte do Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Vila Leopoldina-Vila Lobos, um dos dez PIUs previstos para a cidade de São Paulo neste momento. Esta modalidade de projeto foi criada por decreto em 2016, com base em premissas estabelecidas pelo Plano Diretor de 2014, e tem a finalidade de ordenar regiões específicas da cidade, de grandes trechos urbanos a pequenos projetos específicos, como é o caso deste em que estão as duas comunidades perto da Ceagesp. Ali, o Grupo Votorantim, um dos maiores conglomerados industriais latino-americanos, quer criar um bairro novo, com prédios comerciais, residenciais, novas ruas e praças. Uma região de 300.000 metros quadrados a beira da Marginal Pinheiros. "Retirar as duas favelas é a forma de viabilizar este projeto, por isso é do maior interesse [para a iniciativa privada]", resume a urbanista Raquel Rolnik. Um terço desta área pertence à empresa.
Para capitalizar mais com a área e conseguir construir além do limite determinado pelo Plano Diretor, a empresa precisa dar uma contrapartida financeira para a prefeitura. Algo que, segundo determinou o plano de 2014, precisa ser necessariamente revertido para moradias populares. E foi desta forma que os moradores das duas favelas foram lembrados. A Votorantim poderá construir uma área duas vezes maior do que o regulamento municipal permite. Em troca, investirá 80 milhões de reais em habitações para a população pobre e na revitalização de um conjunto habitacional popular que fica perto delas, o Cingapura Madeirite. Dos novos apartamentos, 250 ficarão dentro do próprio terreno da Votorantim e o restante, cerca de 500, ficará em um terreno público a cerca de um quilômetro, usado agora pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET).
Com 30.000 metros quadrados, a área da CET é alvo de polêmica há quatro anos, desde que foi marcada pelo Plano Diretor como uma ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) tipo 3 –que prevê que 60% da área vire habitação popular para famílias que ganham até três salários mínimos. Na época, os moradores do entorno, formado por prédios de classe média alta, se revoltaram, conforme contou uma reportagem do EL PAÍS de abril de 2015. Os argumentos contrários variavam de a impossibilidade de se conviver com a "sujeira e bandidagem" que chegariam com os moradores da favela à denúncia de que o terreno da CET é contaminado —algo que a Prefeitura garante que será resolvido até o momento da construção das novas moradias populares.
Agora, os edifícios do entorno questionam o projeto proposto pela Votorantim. E, para isso, começaram a realizar uma vaquinha para debater alternativas para o plano. De acordo com a Associação Viva Leopoldina, criada em meio a este conflito, nove prédios da região já acertaram em suas assembleias o pagamento de taxa extra opcional no condomínio que varia de 15 a 35 reais por apartamento. "Com o dinheiro contratamos o [escritório de arquitetura] Sidonio Porto para redesenhar o PIU. Não tem como combater o gigante sem recursos", afirma Carlos Alexandre de Oliveira, 47, conselheiro fiscal da associação. "O plano está mal desenhado. A Votorantim oferece o mínimo previsto em lei", ressalta ele.
"Ela vai instalar essas famílias em um terreno que é público, ou seja, não vai precisar pagar por ele. O que eles estão fazendo é uma verdadeira limpeza, vão pagar o mínimo de impostos possível e construir o mais alto que puderem. O que se esconde por trás disso é um grave prejuízo financeiro. Quem não quer pobre do lado são eles", ressalta Oliveira, que defende que as favelas sejam urbanizadas no local onde estão."A associação não acredita em verticalização de favelas. O Cingapura Madeirite está abandonado. Imagina o que vai acontecer com um prédio de 25 andares, com elevador, tendo que se pagar energia elétrica e água. As pessoas não vão aguentar manter seus imóveis e vão voltar para a favela. Não adianta empilhar as famílias", diz.
Philip Yang, diretor-geral do Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole(Urbem), responsável pelo projeto da Votorantim, rebate os argumentos. "A favela da Linha está sobre um ramal ferroviário e a do Nove em uma área que era para ser rua. São faixas muito estreitas, não dá para reurbanizar ali, pois não é adequado para se morar", afirma. Ele refuta o argumento de que a empresa queira afastar os moradores da favela de seu megaempreendimento, ressaltando que parte das moradias populares que serão construídas ficarão dentro do terreno da Votorantim.
O secretário da Habitação, Fernando Chucre, também afirma que urbanizar as duas favelas é impossível pelo tamanho da área que elas ocupam. E ressalta que o fato de se usar o terreno público para a construção do projeto é vantajoso para o município e para os próprios moradores. "A empresa vai pagar um determinado valor para poder construir a mais. Se a prefeitura usa o terreno que já é público para construir essas moradias, sobra mais dinheiro para construir mais unidades. É lógico que é melhor fazer isso e atender mais gente", ressalta ele, que destaca que a contrapartida da Votorantim prevê a manutenção dos prédios por cinco anos e que os moradores pagarão taxas de luz e água solidárias, mais baratas seguindo uma regra já vigente para a população pobre.
"Os moradores que não querem a gente por perto não estão olhando por nós, não vieram ver como a gente vive, não olham para a gente como seres humanos", desabafa Flávia Cristiane Paulino, 27, conselheira da Associação dos Moradores do Ceasa, que reúne moradores das duas favelas e também foi criada em meio a recente confusão. Flávia é uma das moradoras da favela do Nove, que perdeu tudo há quatro anos em um incêndio na comunidade. Reconstruiu sua casa com a ajuda de doações dos irmãos da igreja evangélica que frequenta. "Se estamos nesta situação é por culpa do Governo, que abandona a população pobre e comete crime social. A população daqui quer a mudança, quer uma moradia digna e tem este direito. É uma oportunidade única e vamos abraçar de todas as formas", diz Welton Washington de Oliveira, 24, também da associação. "É hora de pensar um pouquinho na gente", ressalta a moradora da Linha, Lúcia de Salles Alexandre, 44. "Por que posso trabalhar na casa do rico, conviver com o rico dignamente, mas não posso morar perto deles?", questiona.