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Opinião

Valor Econômico 

01 de dezembro de 2023

Virtudes e vícios em São Paulo

Philip Yang, Milton Braga, Hugo Mesquita e Homero Neves*

 

Semanas atrás, o prefeito Ricardo Nunes assinou Decreto que promove a injeção de R$ 1 bilhão em programa de requalificação de imóveis para fins residenciais no centro de São Paulo. A medida foi alvo de críticas em órgãos de imprensa e plataformas como a Folha, Metrópoles, X e Intercept.

Dado o contexto das controvérsias que cercam as políticas voltadas para a região central, as reações foram tão previsíveis quanto simplificadoras. A esquerda acusa o governo de beneficiar moradores ricos, de entesourar o capital privado e de faltar com transparência. Ultraliberais afirmam que a injeção de tal volume de capital distorce mercados e que a Prefeitura deveria se ater a funções típicas de Estado. Se o governo prover limpeza e segurança públicas – seguem os liberais – os mercados atuarão e o centro voltará a ser um paraíso na Terra.

Em que pese os inevitáveis vieses que todos temos, vale examinar se de fato o Decreto só carrega vícios ou se traz alguma virtude nos objetivos que busca alcançar. Comecemos pelo contexto da realidade dos últimos 50 anos.

Há décadas o centro de São Paulo vive um quadro desolador. Crime e violência, sujeira, deterioração do ambiente construído, prédios ociosos e moradores de rua marcam a paisagem urbana. O esvaziamento e a degradação do centro se aprofundaram sem perspectivas de que pudessem ser revertidos.

Por sorte, no passado recente, agentes econômicos buscaram formas de aproveitar o rico patrimônio dormente, público e privado. Mantendo a esperança de que uma requalificação do centro será possível, novos restaurantes e galerias de arte, livrarias e oficinas de criação vêm sendo implantados, persistindo na crença entre cidadãos e empreendedores há muito instalados na região central de que, apesar das mazelas, o centro é o lugar certo.

No plano imobiliário, empresas (Ilion, Metaforma, NSK3, Planta.Inc, Somauma, TPA entre outros, financiadas ou não por fundos) têm buscado reformar prédios antigos com produtos residenciais. O desafio enfrentado por elas não é pequeno. O prazo e o risco das aprovações são enormes. Em muitos casos, o valor histórico desses prédios, muitos deles subocupados, deve ser preservado. Isso toma tempo e custa caro.

Alguns desses empreendedores apreciam a história e a arquitetura. Outros são movidos pelo interesse em favorecer a cidade compacta e resgatar um estilo de vida. Todos têm em comum o fato de que são agentes capitalistas e precisam reproduzir o capital com taxas de retorno adequadas, compatíveis com o risco dos projetos. Esse movimento, vigoroso nos projetos, mas tímido no volume geral de lançamentos, aconteceu contra o pano de fundo do esvaziamento residencial do centro.

Desde os anos 1980, prédios históricos vêm se esvaziando diante do olhar impassível do poder público. Nada ou muito pouco foi feito em favor desse tipo de requalificação durante vários mandatos e é nesse sentido que o apoio aos retrofits da gestão Nunes por meio do programa Requalifica e o Decreto de outubro passado precisa ser examinado.

Sobre as críticas veiculadas, alguns apontamentos.

O custo de não fazer. Sempre avaliamos políticas pelo custo da ação, mas a inação também tem seu preço. A paralisia de diversas gestões municipais diante da degradação de prédios antigos teve um custo social enorme. Esvaziamento, insegurança, violência e erosão da memória são algumas das externalidades negativas que o descuido de administrações anteriores diante do patrimônio histórico trouxe à cidade. Nesse contexto, as medidas de incentivo à requalificação têm mérito intrínseco. O déficit de transparência de fato existe e precisa ser corrigido, mas é inegável que a iniciativa é tão bem-vinda quanto necessária.

Taxas de retorno. Requalificar é mais arriscado do que construir. Portanto, entre construir do zero ou reformar um imóvel histórico, investidores sempre optarão pelo primeiro, a não ser que o poder público subsidie essa diferença de custos. Qual será o tamanho certo do incentivo a ser dado? Assim como esse prejuízo social "de não fazer" é enorme e de difícil mensuração, o valor necessário para romper a inércia e a desconfiança e trazer o retrofit à agenda dos mercados também é difícil de ser quantificado. Nesse sentido, são pertinentes as críticas fiscalistas que demandam mais cálculos e transparência no desenho de políticas como o Requalifica. Precisam ser ouvidas e acatadas por esta e futuras gestões. Será importante o governo demonstrar numericamente esses cálculos, para que tenhamos indicadores de controle dos resultados e para que o governo demonstre que não há distorções.

Só para ricos? Em um país em que as políticas de habitação social chegaram a responder por mais de 90% das unidades lançadas, não nos parece necessariamente ruim que uma pequena porção das unidades no centro requalificadas seja direcionada para faixas mais abastadas. O Decreto destina 75% dos recursos a unidades de habitação social. Em tom crítico, manifestações na mídia assinalam que unidades do Edifício Renata estão sendo ofertadas a R$ 30 mil mensais. Esse fato é, na verdade, uma vitória da cidade. Devemos celebrar quando alguém em qualquer nível de renda efetivamente prefira se instalar no centro da cidade. A diversidade econômica é um atributo indispensável das democracias liberais.

O declínio do centro resultou de uma falha de mercado e de governos. Nesse panorama, andorinha não faz verão, mas o apoio ao retrofit apresenta o mérito de romper a inércia gerada pelo impasse dessa dupla falha. Há pontos a serem aprimorados. A execução precisa ser a mais transparente possível. Pontos criticados demandam atenção da cidadania e dos órgãos de controle, mas não desmerecem a iniciativa como um todo. 

Num momento de polarização, de movimentações eleitorais e de descrédito da política, é fundamental fazermos esforço de identificar não só vícios, mas também virtudes das políticas para não perdermos de vista a construção de um futuro melhor. Construir menos, no mundo todo, e preservar mais o patrimônio modernista, no centro de São Paulo, são imperativos da agenda urbana.

* Membros do Instituto URBEM

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