Capital, coluna de Mariana Barbosa e Rennan Setti
O Globo
25 de junho de 2023
A Revisão do Plano Diretor de São Paulo
De um mar de incertezas para um oceano de insegurança
Philip Yang e Bianca Tavolari
Nesta segunda-feira (26), após dois adiamentos sucessivos, a revisão do Plano Diretor (PDE) de São Paulo volta à pauta de votação da Câmara Municipal. Busca-se aprovar, em segundo turno, uma nova versão do Projeto de Lei que, mais uma vez, é alvo de grandes controvérsias. O novo texto, ao tentar a consolidação das pressões e contrapressões vindas de diferentes segmentos da sociedade, expressa hegemonicamente os interesses do setor imobiliário ao arrepio dos estudos produzidos pelas áreas técnicas da própria prefeitura, academia e sociedade civil organizada.
A primeira versão do texto substitutivo era portadora de medidas cujo impacto econômico, social e ambiental era incerto e desconhecido, dada a ausência de evidências ou elementos que pudessem fundamentá-las. Submetido a duras críticas, o texto foi remendado e maquiado por diversas mãos que, ao simularem uma aparência de recuo, o transfiguraram num objeto normativo disforme e desconexo, um verdadeiro gótico Frankenstein. Saímos portanto de um mar de incertezas para adentrar um oceano de insegurança jurídica. Vejamos alguns exemplos estruturais.
1. O relator havia anunciado um recuo em relação ao perímetro de extensão dos eixos, que permitem maior adensamento construtivo nas áreas próximas de estações de metrô, trem e linhas de ônibus. O primeiro substitutivo havia estabelecido o raio de 1km das estações - e o recuo seria para 700m. Mas é um falso recuo. A base de cálculo das quadras mudou para abarcar todas que de alguma forma sejam "alcançadas pelo raio", o que faz com que o raio de 700m possa se expandir para além de 1km se "tocar" em quadras grandes. Para além da intransparência, há insegurança jurídica. A formulação "quadras alcançadas pelo raio de 700m" não é técnica. Pode ser questionada. Além disso, o texto deixa a definição dessa expansão para a Lei de Zoneamento, o que gera enorme insegurança sobre sua validade, amplitude e critérios de aplicação. Também abrimos flanco à discricionariedade para demarcar essas áreas, que agora passam a ser definidas por quadra e não por áreas pré-determinadas pelo Plano Diretor. Se o texto for aprovado, será aberto o balcão de negócios quadra a quadra na Lei de Zoneamento.
2. Num momento em que a descarbonização da construção emerge como imperativo em todos os marcos normativos mundo afora, subitamente o novo substitutivo decide onerar e, portanto, potencialmente inviabilizar as obras de retrofit ao incluir, no artigo 45, § 9º, as "áreas existentes" no cálculo da outorga onerosa. Ou seja, além do retrocesso dado por maior permissibilidade para vagas e apartamentos maiores no eixos, o texto agora se volta contra as reformas de unidades antigas, ação importante nos esforços de reduzir o impacto ambiental de novas construções. Além disso, há insegurança e falta de clareza em relação ao uso do termo "áreas existentes", que não determina como áreas computáveis e não computáveis entrarão na conta.
3. A fiscalização da destinação de unidades de Habitação de Interesse Social (HIS) é fundamental. Há evidências de que os destinatários das unidades não têm cumprido com os critérios estabelecidos na política, especialmente por duas razões: fraudes e a adoção de um critério de renda imperfeito, que é fixado no momento da compra da unidade. O substitutivo decide enfrentar o problema responsabilizando os agentes privados produtores de HIS. Se houver divergências entre a renda e a faixa de HIS, incorporadoras e construtoras estarão sujeitas a pagar pelo potencial construtivo utilizado, valor que é somado a uma multa de duas vezes o montante da outorga. Em outras palavras, pagariam 3x o valor da outorga, que é isenta para HIS. Há um problema claro em terceirizar a responsabilidade para o mercado. Nos casos de fraude, o mercado não tem a mesma capacidade para cruzar e verificar informações sobre as famílias, tal como faria o poder público. Além disso, as rendas das famílias oscilam com o tempo, seja para cima ou para baixo. O texto determina que o critério é permanente pelo prazo de 10 anos e vincula ao valor declarado na compra, abrindo ampla margem para penalização do mercado por um desenho mal feito de política pública. O risco terá de ser incluído no modelo de negócio de quem produz HIS na cidade, podendo inviabilizar os empreendimentos.
4. À primeira vista, o artigo 59 do substitutivo apenas cria uma regra para disciplinar uma nova forma de vinculação dos Certificados de Potencial Adicional de Construção - CEPACs em Operações Urbanas Consorciadas, prática necessária nas várias OUCs, mas sem critérios homogêneos no regramento geral. No entanto, a redação estabelece a vinculação em relação ao lote e não mais ao empreendimento. Não é um mero jogo de palavras. Se estamos falando do lote, isso significa vincular o potencial construtivo ao imóvel, possivelmente averbando-o em sua matrícula. A confusão gera incerteza jurídica, já que o potencial construtivo adicional é bem jurídico público dominical, de titularidade da prefeitura, como revela o próprio plano diretor em seu artigo 116. Pode ser alienável para fins de implantar a política de desenvolvimento urbano positivada no plano diretor e na legislação deste decorrente, mas jamais pode ser entendido como propriedade perpétua privada. Como os CEPACs são títulos mobiliários, são regulados pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM, especialmente pela Resolução CVM n.84/2022. Uma alteração descuidada como essa pode gerar tensão regulatória entre a CVM e a prefeitura de São Paulo.
Esse jogo de forças e contraforças econômicas e políticas ocorre contra o pano de fundo da corrida eleitoral do próximo ano. Pressionados pelo favoritismo do candidato Guilherme Boulos, o Partido dos Trabalhadores (PT), partido sem candidatura própria promissora, fragmentou seu voto, com parte da bancada participando favoravelmente da vitória da revisão em primeiro turno, como expressão implícita, porém real, de apoio ao atual prefeito.
No entanto, a baixa qualidade do novo texto, suas inconsistências e as inúmeras críticas que o processo de revisão continua a receber podem e devem mudar o curso dos eventos. A própria interveniência cidadã do Ministro Fernando Haddad – que tem manifestado sua preocupação com as consequências negativas para a cidade junto a diversos segmentos da sociedade paulistana e ao Governador Tarcísio de Freitas – agora mobiliza o PT para uma maior resistência contra o atropelo com que o processo vem sendo conduzido.
É essencial, e mesmo emergencial, apelar para que o Prefeito, detentor de legítimo poder de veto, esteja presente nestas derradeiras horas para que o processo ganhe um novo trilho de serenidade e seriedade, que, num prazo mais estendido, recoloque um novo texto e referências mais altivas para a lei que, afinal, definirá o curso do desenvolvimento da cidade até 2029.
Bianca Tavolari é professora do Insper, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Maria Sibylla Merian Centre (Mecila). No Insper, coordena o Núcleo de Questões Urbanas e co-coordena o Observatório do Plano Diretor.
Philip Yang é fundador do Instituto URBEM, Senior Fellow do CEBRI e membro do coletivo Derrubando Muros.
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