Uma São Paulo para conviver
10/05/2013 | 00h00
Por Marli Olmos
A mulher empurrando um carrinho de bebê numa rua deserta da Barra Funda, repleta de oficinas mecânicas, passou despercebida por quem costuma circular pela região. Mas a imagem chocou a antropóloga Luciana Aguiar, coordenadora de uma equipe que traçou o perfil de quem já vive ou gostaria de viver na região central de São Paulo. Cenas de vida em ambiente inóspito podem desaparecer a partir do novo programa de "repovoamento" do centro paulistano. A proposta é iniciativa do poder público, mas, diferentemente de outras tentativas, ganhou o engajamento da sociedade civil, cansada da "ausência de cidade" na região central do maior município da América Latina.
Luciana integra um batalhão de 73 profissionais, entre sociólogos, engenheiros, arquitetos e advogados, escalados às pressas pelo empresário Philip Yang, para mapear não só o perfil sociológico de moradores como também condições fundiária, arquitetônica e jurídica de imóveis, terrenos e antigos galpões industriais espalhados no centro expandido.
Concluído em quatro meses, o trabalho permitiu que o Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole (Urbem), organização não governamental comandada por Yang, saísse vitorioso na concorrência aberta pelo governo estadual para a criação do projeto do Casa Paulista, primeira parceria público-privada (PPP) do país voltada à habitação. O resultado do esforço desse mutirão, cuidado por Yang como obra de arte, está detalhado em 12 tomos de 300 páginas cada um.
Apesar do nome estrangeiro, que herdou do pai chinês, Yang é um paulistano apaixonado por sua cidade. Curiosamente, não é urbanista e sequer trabalha em profissão ligada à área. Trata-se de um músico que acha natural seu interesse por urbanismo. Ele lembra que a afinidade entre as áreas já foi percebida por Goethe (1749-1832), quando disse que "arquitetura é música congelada".
A poesia da citação do escritor alemão não basta, no entanto, para abraçar a ousada ideia de conduzir o projeto. É preciso fôlego financeiro. Fundador da Petra Energia, empresa que explora petróleo e gás natural, Yang utiliza parte dos lucros para sustentar o Urbem e o sonho de facilitar a participação da sociedade civil na reorganização e humanização das áreas urbanas paulistanas.
Foi com alguns milhões de reais que o empresário conseguiu montar um mutirão de profissionais para disputar a concorrência da qual também participaram grandes consórcios de empresas como Odebrecht, Impacto Gouveia e Brookfield. "Achamos que se fizéssemos um projeto com qualidade inquestionável não perderíamos essa briga", diz. O receio de Yang era de que mais de uma construtora vencesse. Com isso, diz, poderia haver fragmentação, o que levaria ao risco de os novos conjuntos habitacionais repetirem o modelo de outros que se transformaram em bolsões de pobreza.
Ver sua ONG vencer construtoras de peso representa o que Yang chama de primeiro milagre do programa. Para ele, o resultado tende a ser melhor quando a sociedade civil consegue interferir em um plano que tradicionalmente ficaria sob o manto do poder público ou à mercê do mercado imobiliário.
O poder público sozinho, diz, não é rápido o suficiente para garantir que o espaço urbano acompanhe mudanças econômicas. A primeira lei de zoneamento do município é de 1930. A segunda só apareceu 40 anos depois e a mais recente é de 2002. E se o mercado imobiliário participar do jogo sozinho, o resultado tende a ser ainda pior, diz. "Tudo gira em torno das oportunidades de negócios. É uma torre aqui num dia, um shopping acolá depois. Esse movimento traz dinheiro, mas é insuficiente para o desenvolvimento de um tecido urbano mais agradável." Para ele, é possível ter lucro com habitação popular sem deixar de cuidar do legado que fica para a cidade.
Instalada num belo casarão do bairro de Higienópolis, a sede do Urbem parece ser o escritório no qual qualquer urbanista gostaria de trabalhar. Na imensa sala de reuniões, de onde se avistam árvores frondosas de uma praça, Yang fala do seu projeto com o mesmo entusiasmo com que o apresentou às autoridades estaduais e municipais, no lançamento do Casa Paulista, há um mês.
Empolgado, repassa detalhes da apresentação. O plano é erguer 20,2 mil unidades habitacionais, divididas em seis áreas. O projeto custará R$ 4,6 bilhões. O governo estadual investirá R$ 2,6 bilhões e a prefeitura, mais R$ 404 milhões. Espera-se que a iniciativa privada assuma a maior parte do restante. Mas também estão previstos recursos do programa federal Minha Casa, Minha Vida.
Yang, um empresário de 50 anos, alegre e empenhado em desenvolver projetos que transformem sua cidade num lugar mais agradável, não perde tempo na apresentação de seu projeto. Diante de enorme telão formado por fileiras de monitores na principal parede da sala, ele repete o discurso que levou às autoridades: "Vamos primeiro mostrar o que a Casa Paulista não é".
Começa, então, uma deprimente seleção de fotografias do antigo Banco Nacional de Habitação (BNH) e de condomínios de classe média cercados por grandes muros. A esse tipo de construção murada o empresário dá o nome de "modelo medieval". Embora o tipo BNH seja diferente do medieval, Yang aponta similaridades: "Os dois são guetos e não geram espaços públicos, não geram cidade".
A proposta do Casa Paulista é misturar moradia, trabalho, comércio e serviços. Outra característica é a proximidade da malha ferroviária. As residências estarão em um raio de 600 metros de uma estação de trem ou de metrô, suficiente para alcançar o transporte coletivo em dez minutos de caminhada.
Um modelo de uso misto proporcionaria "vida de cidade" a locais como a rua que abateu a antropóloga Luciana Aguiar, sócia da empresa de pesquisa Plano CDE. "Gente, a Barra Funda é bairro muito masculino", disse Luciana aos arquitetos que participam do projeto. Aos pesquisadores, a mãe que empurrava o carrinho contou estar arrependida de ter comprado apartamento numa área tão sem graça, triste para passear com o filho e cujo forte da oferta de serviços é atender apenas a quem precisa consertar o carro.
O material colhido pelos cientistas sociais e antropólogos formou um banco de dados. Reúne depoimentos de 80 famílias que já moram no centro ou estão em busca de uma casa para comprar, além de entrevistas com quatro líderes de movimentos de moradia. "Levantamos as informações pela perspectiva dos usuários", diz Luciana. O trabalho revelou perfis que não aparecem nas pesquisas para o censo, como os imigrantes bolivianos, que também utilizam os equipamentos urbanos.
Na região central organizada no projeto do Urbem os prédios dão direto na calçada, sem recuo, com comércio no térreo, moradia e locais de trabalho nos edifícios, vias para pedestres amplas e parques lineares. Os prédios destinados a habitações vão misturar famílias de diferentes faixas de renda - uma parte para quem ganha até seis salários mínimos e outra para o limite de 16 salários.
Segundo Yang, esse modelo é o que faz parecer agradáveis cidades como Barcelona, Nova York ou Paris. Situação inversa vive, no entanto, quem se arrisca a morar em uma rua como a 25 de Março. "De dia é um lugar dinâmico, lotado de gente, mas à noite dá medo e por isso fica deserto", diz Luciana. Embora abundante de lojas de tecidos, a área não dispõe de um supermercado.
Antes da criação do Casa Paulista, o Urbem já havia tentado estabelecer uma aliança com proprietários de imóveis do centro para provocar a reocupação da região. Mas esbarrou em problemas como imóveis abandonados com documentação complicada. A situação de cada ponto, incluindo casos confusos de heranças, também foi mapeada pelo batalhão escalado pela ONG.
A equipe tem profissionais como a economista Ana Claudia Rossbach, consultora do Banco Mundial com experiência na área pública e em projetos de moradia popular em outros países. Segundo ela, a coleta de dados inclui análises de questões como a possibilidade de existência de solos contaminados nos terrenos onde no passado funcionavam fábricas. "Essas dificuldades encarecem o processo. Um programa habitacional de interesse social ficaria inviabilizado sem parcerias", diz Ana.
Yang aponta como "o segundo milagre" do programa a união entre os governos municipal, estadual e federal, que deixaram de lado questões partidárias e de ciclo administrativo. Ele espera, agora, o terceiro milagre a partir do envolvimento da iniciativa privada, como construtoras e bancos. Mas isso ainda depende da publicação de mais um edital, ansiosamente aguardado pela equipe do Urbem.
Como o custo de construir moradias na região central é mais alto do que na maior parte da periferia, será preciso que as construtoras se convençam da expectativa de rentabilidade, sobretudo com a exploração da área para comércio e serviços. Se tudo der certo, as primeiras unidades estarão prontas em 2015 e em 2018, toda a reurbanização, concluída.
O Urbem também deu uma mão na parceria do poder público. O programa Casa Paulista foi lançado pelo governo estadual em plena campanha das eleições municipais. Yang não perdeu tempo e decidiu antecipar as conversas com os candidatos a prefeito. As discussões avançaram, diz, com os dois finalistas - Fernando Haddad e José Serra.
Até aí, Yang tinha conseguido trabalhar com a discrição que gostaria de manter até o fim das obras. Mas perdeu o anonimato na apresentação do projeto. Mesmo assim, ainda tenta manter reserva. Sempre atribui à equipe todos os méritos da iniciativa bem-sucedida. E faz questão de colocar-se atrás dela até mesmo ao posar para a foto da reportagem. O dom musical que marcou sua formação ele prefere reservar para a vida particular. Nos momentos de lazer, toca piano com a esposa, também pianista. Já o tino para a gestão de negócios, ele aprimorou no mestrado em administração pública pela Universidade Harvard. Raramente o risonho Yang fala sobre si.
O tímido paulistano transforma-se, porém, em apresentador eloquente quando a conversa volta para o Casa Paulista. Para ele, o processo de subutilização e degeneração do centro, que provoca "um cenário de ausência absoluta de cidade", é consequência do descompasso entre o desenvolvimento econômico e urbano e o congelamento das leis de zoneamento. "Enquanto a economia avançou, empurrada por novas ideias e tecnologias, a cidade permaneceu congelada por zoneamentos e códigos de obra obsoletos", destaca o presidente do Urbem.
"Houve um claro esvaziamento da região central de São Paulo em 1991. Um ligeiro repovoamento surgiu mais tarde, graças à melhora da infraestrutura de transportes e migração de famílias da classe D para a C. Mas ainda é pouco. Estamos tentando dar um salto mais de 20 anos depois", diz.
Yang endossa a opinião praticamente unânime de urbanistas de que as tentativas de melhorar a região central por meio da revitalização ou criação de equipamentos culturais, como Pinacoteca e Sala São Paulo, não ajudaram na reocupação. "Foram um sucesso em si, mas não como cidade. Quando um concerto na Sala São Paulo termina, todo mundo voa dali. Faltou uma intervenção plural."
Para o empresário, a esperança é de que a nova experiência permita a São Paulo pular etapas na organização urbana em relação ao que cidades industriais "mais maduras", como Nova York, Tóquio, Paris ou Londres, experimentaram desde a década de 1930. Naquela época, nessas cidades, espaços de trabalho e lazer eram totalmente separados geograficamente. Já nos anos 1960, era pós-industrial, começou a aproximação entre trabalho e lazer e a partir de 2000, uma mistura total. Esses municípios, diz o presidente do Urbem, aproveitaram o fenômeno da desindustrialização para reorganizar e humanizar os tecidos urbanos. "Conseguiram avançar com novas vocações no campo da tecnologia e da economia criativa graças a uma combinação poderosa de ação do governo, do mercado e da sociedade civil. Quem sabe, nosso atraso permita que a cidade dê um salto de sapo."
Mas para o "terceiro milagre" acontecer, falta atrair a iniciativa privada. Ainda assim, não será fácil conquistar a credibilidade de uma população já cansada de experiências passadas malsucedidas. Yang parece, no entanto, disposto a continuar como o regente da sociedade civil nesse espetáculo.