Valor Econômico
13 de abril de 2018
Por Eduardo Giannetti, José Alexandre Scheinkman, José Roberto Afonso, Marcos Lisboa, Philip Yang, Teresa Caldeira e Tiago Cavalcanti
O zoneamento é uma peça-chave da regulação territorial urbana. Uma boa cidade deve sempre almejar atrair a produção e bons empregos, ser agradável para os seus habitantes e estimular a interação entre pessoas de diferentes classes sociais. Essas qualidades dependem de uma boa organização do espaço, e as regras de zoneamento podem equilibrar o uso do território urbano entre a produção e as distintas formas de vida na cidade. O zoneamento deve considerar a presença de
atividades produtivas, o imperativo da conservação ambiental, a necessidade de preservar a história e o direito de acesso aos serviços locais. O marco regulatório da política urbana é tão importante para a economia quanto é para o desenvolvimento da primeira infância, o amparo da longevidade crescente, a mitigação das mudanças climáticas, a segurança hídrica, a coesão social, entre outras expressões de vida em sociedade. Em termos econômicos, a regulação deve diminuir as externalidades negativas e promover as positivas.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, o principal marco regulatório territorial da cidade é constituído por duas leis: o Plano Diretor Estratégico (PDE) e o Zoneamento (ou Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo). Os dois instrumentos legais conformam um binômio: o PDE, como uma carta de diretrizes gerais, e o Zoneamento, como um documento que promove seu detalhamento e aplicação.
Esse binômio é um avanço no marco regulatório e portador de uma visão de futuro para a cidade, ancorada em conceitos alinhados com a Nova Agenda Urbana (2016) pactuada por 170 nações, incluindo o Brasil. PDE/Zoneamento tem como linha mestra promover o adensamento populacional e construtivo junto à rede de transporte público, o equilíbrio entre emprego e moradia, a mistura de usos e de faixas de renda, o aumento da oferta de moradia e a sustentabilidade do meio ambiente.
Os avanços na regulação da capital paulista servem de exemplo ou referência para as demais. O binômio compreende ferramentas regulatórias amadurecidas em documentos importantes, como a Carta de Embu (1976) e o Estatuto da Cidade (Lei Federal de 2001), e foi consolidado durante a administração Fernando Haddad (2013-1016), com aprovação pela Câmara Municipal. Foi o acordo possível tendo em vista os diversos interesses, muitas vezes conflitantes, de uma cidade complexa como São Paulo. Já no primeiro ano de mandato, a administração Doria manifestou interesse em promover "ajustes pontuais" no PDE e no Zoneamento, indicando que a legislação deveria ser "flexibilizada" e "adequada à cidade real". Ao fim de 2017, lançou minuta de Projeto de Lei com vistas à revisão da Lei 16.402/16 (Lei do Zoneamento).
Este artigo tem por objetivo discutir visões do que se busca com a regulação urbana e esclarecer o que está em jogo na pretendida revisão da Lei do Zoneamento de 2016 - caso específico de São Paulo, mas que pode influir outras cidades brasileiras. Assinam profissionais de diferentes campos (urbanismo e planejamento, políticas públicas, economia) e com posições distintas (e, em alguns aspectos específicos, até mesmo opostas) no atual debate sobre cidades, mas reconhecem que a regulação resultou de amplos debates transparentes com a participação de muitos grupos da sociedade. Reconhecem também que a revisão proposta pela prefeitura apresenta tanto méritos quanto pontos polêmicos que vão na direção contrária das práticas que se tornaram dominantes na moderna discussão sobre urbanismo. Em comum, o grupo se preocupa com os efeitos da revisão pretendida sobre o futuro da cidade.
Controvérsias - Os debates iniciais suscitaram respostas antagônicas, reveladoras de visões de governo e da economia conflitantes. Parte dos autores é contrária à implementação, prevista na Lei do Zoneamento, da outorga onerosa pelo direito de construir (OODC) - cobrança, pela autoridade pública, de valores pelo "solo criado", cobrada apenas da área construída que ultrapassa a metragem do terreno original, com o intuito de recuperar para a coletividade o valor que o investimento público agregou a um lote privado. Consideram a cobrança da outorga onerosa um desincentivo a uma
ocupação mais densa do solo, quando um dos objetivos centrais do PDE é o de promover o adensamento e, nessa visão, a outorga onerosa pode ser interpretada como imposto sobre o dono de terreno para exercer a opção de construir. Esse custo desestimula a construção de edificações maiores e faz com que os donos de terreno adiem o momento em que exercem a opção de construir, afetando a oferta de novas construções e, portanto, o preço dos imóveis.
Alternativamente, esses autores defendem o IPTU como imposto ideal desde que aplicada alíquota maior sobre o valor do terreno do que sobre as edificações, pois o aumento do imposto combinado com coeficientes de aproveitamento mais elevados induziriam maior densidade. No caso de novas construções, a alíquota sobre a edificação deveria ser maior em áreas longe de transportes coletivos e em áreas com menor infraestrutura disponível. Esse IPTU sobre o valor do terreno teria a vantagem de não afetar a oferta de imóveis, somente pressionaria para baixo o valor dos terrenos.
Por outro lado, outros observam que o aumento do IPTU faz sentido teórico, mas apresenta baixa viabilidade política - como a história recente de São Paulo mostrou. Independentemente da cidade e do partido majoritário, sempre houve oposição no Brasil a qualquer tentativa de elevação do IPTU, e isso viabiliza a outorga onerosa como ferramenta regulatória mais aceitável politicamente, ainda que possa desestimular o adensamento. Neste caso, os críticos da outorga sugerem que ela seja cobrada não só pelo "solo criado", mas pelo total edificado, sem isenção para a área original, de modo a desestimular as pequenas construções. Mais que isso, a outorga deveria ser superior onde o impacto marginal das novas construções sobre a infraestrutura e sobre o meio ambiente for maior e ser menor para construções que atinjam objetivo de aumentar a interação entre habitantes de diversos níveis de renda. Essas modulações, com exceção da cobrança sobre qualquer construção no terreno e não apenas sobre o "solo criado", já estão previstas na fórmula de cálculo da outorga, mas poderiam ser aprimoradas para ganhar potência e eficácia.
Outra controvérsia se refere à priorização dos corredores em relação aos miolos de quadra como locais para adensamento em toda a cidade. Para uns, essa norma geral desconsidera as peculiaridades dos diversos bairros. Em muitos casos, essa priorização parece adequada, em outros não, inclusive por conta de que alguns eixos de transporte seguiriam sendo pouco atrativos do ponto de vista do consumidor. Para outros, o adensamento nos eixos de transporte precisa ser incentivada pela
regulação, pois a preferência pela moradia próxima ao transporte corresponde também a uma mudança cultural que se aprofunda em São Paulo em função da oferta induzida de novos produtos, como provam os lançamentos e vendas em diversos corredores como os da Consolação, Rebouças e Nove de Julho.
Impactos esperados - As seguintes questões podem pautar a avaliação da proposta da prefeitura: a revisão promoveria ganhos coletivos ou apenas a um segmento da sociedade? Corrige ou agrava distorções alocativas? É indutora de equidade ou aprofunda disparidades econômico-sociais e territoriais?
Os autores opinam que alguns aspectos da revisão proposta representam retrocesso no plano de valores e princípios consoante às melhores práticas urbanas e ambientais, notadamente nos tópicos listados no quadro da página 20. A indução de maior densidade em áreas bem servidas por redes de transporte, o estímulo a formas de mobilidade por modais coletivos e compartilhados, a geração de mais espaços de fruição pública e o fortalecimento de mecanismos de financiamento voltados para a redução do déficit habitacional são objetivos maiores que viriam a ser comprometidos com a adoção das mudanças pretendidas.
Há ainda inconsistência técnica nessas proposições. Em análise da conjuntura de mercado, o argumento da prefeitura de que o binômio PDE-Zoneamento é uma trava à pujança do mercado imobiliário não resiste a dois indicadores: (i) a própria reação do mercado imobiliário, que voltou a crescer após três anos de recuo, e (ii) dos 39 municípios que compõem a região metropolitana, o município de São Paulo é o único que apresentou aumento no volume de lançamentos e vendas de
imóveis em 2017 (55% a mais que no ano anterior), o que mostra que não terá sido o PDE ou o Zoneamento o vilão do mercado, mas, sim, a recessão econômica pela qual atravessou o país (1). Esses números recentes afastam as previsões fatalistas de que o PDE e o Zoneamento deslocariam o mercado incorporador de São Paulo para os municípios vizinhos.
Além disso, não é uma proposta meramente tópica como seus proponentes argumentam. Algumas mudanças são de natureza ampla, de motivação e consequências duvidosas, e, quando resultam em impactos substanciais no Plano Diretor, devem, por lei, obedecer a um ciclo mais longo de revisão, pois demandam dados, estatísticas e projeções que mostrem os efeitos das medidas pretendidas sobre o funcionamento da cidade.
Os aspectos positivos da proposta de revisão procuram corrigir questões em aberto no PDE-Zoneamento, como a regulação de projetos de "retrofit", fundamentais para a recuperação de regiões degradadas. Essas propostas poderiam ser destacadas e adotadas sem demora por lei específica.
No tocante à outorga onerosa, é reconhecido que os instrumentos de captura do valor fundiário adicionado passaram a integrar com força o rol de instrumentos aplicados em diversas cidades do mundo (2) e a literatura no campo das políticas públicas urbanas passou a considerá-la ferramenta central para (i) a mitigação de distorções causadas pela regulação urbanística, (ii) a recuperação de parte da valorização da terra gerada por investimentos públicos e (iii) a geração de receita para investimentos futuros em infraestrutura, tais como espaços públicos, redes de transporte e programas
habitacionais. Trata-se, portanto, de instrumento arrecadatório e distributivo, que não encontra substituto fácil no âmbito das ferramentas fiscais disponíveis. O seu desenho atual não é perfeito, merece ajustes e pode ser aprimorado ao longo do tempo conforme vimos. Mas a simples aplicação de desconto na outorga seria desde já uma medida fortuita e inopinada, inconsistente com as bases de economia política que a colocaram em vigor.
Cidades melhores - As cidades geram hoje a maior parcela do produto global. O setor de serviços inovador em cidades densas que estimulem a troca de ideias, em meio a populações com maior educação média, é cada vez mais relevante para o desenvolvimento econômico. A melhora da regulação e do financiamento do espaço urbano passou a ser um problema público de proporções cada vez maiores no mundo. A necessidade de provisão de infraestruturas compatíveis com os
contingentes populacionais e as atividades econômicas, em meio a constante tarefa de equilibrar os diversos interesses, trazem desafios significativos de financiamento e estimulam a busca de soluções (3).
Na nova economia urbana, agentes econômicos demandam alocação espacial do trabalho mais eficiente, com os trabalhadores de diferentes níveis de renda próximos aos locais de emprego (4), mas segmentos tradicionais do mercado imobiliário preferem empreender em territórios segmentados. Parece-nos consensual que a autoridade regulatória deveria administrar esses interesses conflitantes e buscar regras que, a partir do conhecimento disponível e de conjunto de ideais compartilhados pela sociedade, organizem o território de modo a maximizar o bem-estar da população e a eficiência da
economia. Neste contexto, parece-nos temerário levar à frente a revisão pretendida tendo em vista seus problemas técnicos e jurídicos, a ausência de dados que a justifiquem e o apoio político limitado a subsegmentos do mercado.
A política urbana não se reduz à política imobiliária. As cidades projetam no território aquilo que somos e o que queremos ser como sociedade. Esperamos que os poderes públicos e as forças de mercado e sociais possam encontrar nossa melhor forma de expressão coletiva para a construção da cidade que desejamos. A cidade demanda administração capaz de abarcar a teia de interesses da economia e da sociedade que compõem nossa realidade urbana e de geri-los a partir de base de
conhecimento multidisciplinar. São Paulo segue sendo a maior economia urbana do Brasil e um dos maiores aglomerados humanos do planeta; não pode prescindir de visão espacial para o seu futuro ou deixar-se capturar por grupos particulares. A revisão proposta pelo poder municipal está aquém do olhar de grandeza e dos ideais de eficiência, justiça e beleza que devem mover o sonho paulistano e de todas as cidades brasileiras.
(1) Departamento de Economia do Secovi-SP
(2) The Potential of Land Value Capture for Financing Urban Projects: Methodological Considerations and Case Studies - https://publications.iadb.org/handle/11319/8095#sthash.N588opih.dpuf
(3) The Governance of Land Use Policy Highlights https://www.oecd.org/cfe/regional-policy/governance-of-land-use-policy-highlights.pdf
(4) Why do Cities Matter, Local Growth and Aggregate Growth, Chang-Tai Hsieh Enrico Moretti. NBER Working Paper 21154. http://www.nber.org/papers/w21154
Eduardo Giannetti, economista, formado em economia e em ciências sociais pela USP, PhD em economia pela Universidade de Cambridge; José Alexandre Scheinkman, economista, é professor da Universidade Columbia e professor emérito da Universidade Princeton; José Roberto Afonso, economista, doutor pela Unicamp, professor do IDP e pesquisador do Ibre/FGV; Marcos Lisboa é economista, presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula); Philip Yang, fundador do Urbem, é graduado em música pela USP e mestre em administração pública pela Universidade Harvard; Teresa Caldeira, mestre em ciência política pela USP e doutora em antropologia por Berkeley, é chefe do departamento de Planejamento Urbano e Regional da Universidade da California, Berkeley, e Tiago Cavalcanti, economista graduado pela Universidade Federal de Pernambuco (1995), com doutorado na University de Illinois, é senior lecturer da Universidade de Cambridge, Fellow do Trinity College e professor da FGV.